Terça-feira, 6 de Junho de 2006

Teria o Exército português um plano próprio de retracção/evacuação dos seus contingentes durante a descolonização da Guiné-Bissau?

por Leopoldo Amado

Seria muito interessante encontrar-se o plano de retracção dos contingentes portugueses na Guiné. Eu não tive essa sorte, mas vali-me dos documentos do Arquivo do PAIGC sobre a matéria e, já agora, também gostaria de me certificar da existência dessa hipotética documentação para confronta-la com a interpretação que em muitas situações foram condicionadas pela documentação do Arquivo do PAIGC.

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Aristides Pereira, ex-Secretário Geral do PAIGC

Estou convencido de que a existir, tal plano não se elaborou senão na sequência das negociações de Londres, mas sim após os vários encontros havidos posteriormente na mata de Cantanhez entre o Comando-Chefe da Guiné e uma delegação político-militar do PAIGC. Foram esses encontros, mais do que as negociações de Londres, que fizeram avançar as coisas. Segundo palavras de Jorge Sales Golias, militar português que tomou parte nas negociações de Cantanhez, "(...) Após a nossa exigência a Lisboa de reconhecimento da independência, o General Spínola deixou de falar em vir a Bissau para preparar o referendo. As duas reuniões de Londres com o PAIGC, sem resultados práticos, já tinham passado à história. Continuámos com a força suficiente para coordenar com o PAIGC, através de um contacto clandestino em Bissau, Juvêncio Gomes, e iniciámos contactos no Cantanhez preparando, assim, a transferência de poderes(...)"(Intervenção na Mesa Redonda organizado pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra/Fórum dos Estudantes da CPLP)


Aliás, quando Spínola expediu para Bissau 20.000 cartazes com imagens suas – convicto como estava de que ainda iria lograr proclamar a República da Guiné-Bissau numa Magna Assembleia em que forçosamente o PAIGC seria “coagido” a partilhar o poder com outras forças políticas emergentes (FLING, MDG, LPG).

Assim, no dia 26 de Abril, onze oficiais (1) dirigiram-se ao Gabinete do General Comandante e exigiram a sua demissão e o regresso a Lisboa. Por isso esse grupo de militares portugueses solicitou ao Comodoro Almeida Brandão, o Comandante Marítimo, que assumisse as funções de Comandante-Chefe interino das Forças Armadas na Guiné-Bissau. Regista-se o facto de este oficial já ter reconhecido a Junta de Salvação Nacional (JSN).

Para as funções de Encarregado do Governo interino, o MFA indigitou um dos seus membros, o Tenente-Coronel Mateus da Silva que era Comandante do Agrupamento de Transmissões, o Quartel-General da conspiração, e um dos poucos oficiais superiores que integrava o Movimento dos Capitães (MOCAP). Ao tomar estas decisões, o MFA antecipou-se algumas horas à decisão da JSN que mandava substituir os Governadores pelos Secretários Gerais, como Encarregados do Governo interinos. Era fundamental, logo de início, contrariar a estratégia do General Spínola de efectuar uma consulta popular na Guiné com vista à sua integração numa comunidade lusíada. Ao tomar estas decisões, o MFA antecipou-se algumas horas à decisão da JSN que mandava substituir os Governadores pelos Secretários Gerais, como Encarregados do Governo interinos. E assim se estabeleceu o primeiro confronto entre a JSN e o MFA na Guiné.


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Almeida Santos, um prestigiado jurista português

Mesmo assim, foi nas matas de Cantanhez que se aprovou conjuntamente o plano de retracção das tropas portuguesas, após ter sido adoptado pelas duas partes um documento intitulado "Normas de Vida", documento esse em que basicamente o PAIGC procurava regular a acção do Exército português na fase de transição, tanto mais que ali estava patente que os soldados portugueses apenas podiam deslocar-se num determinado raio de acção dos aquartelamentos, além de uma série de outras restrições em que se via claramente que o PAIGC influenciava agenda e ditava o rumo dos acontecimentos. Aliás, tudo isso é corroborado com o facto de, nas “Normas de Vida”, não constar nenhumas restrições relativamente aos elementos das FARP que, de resto, já circulavam livremente em todo o território nacional, inclusivamente em Bissau, onde era possível ver-se grupos mistos, constituídos pela Policia Militar do Exército Português e elementos do PAIGC, que efectuavam patrulhamentos conjuntos em Jeep Willis em Bissau.

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António de Spínola e Guiné: uma ligação de contornos ainda por esclarecer-se completamente


Em virtude das desconfianças que o PAIGC nutria em relação ao Spínola, que caucionava as acções de formações políticas guineenses opostas ao PAIGC, este fez ver ao Fabião que as negociações de Londres não permitiram avanços significativos que permitissem uma normalização da situação militar prevalecente na fase de transição, procurando, de forma velada, pressionar as autoridades portuguesas com a possibilidade de retoma das hostilidades. Imediatamente, o PAIGC recusa terminantemente a ideia da proclamação do Estado da Guiné-Bissau nas condições proposta por Spínola, lembrando ainda a Portugal, por intermédio do Fabião, que em momento algum teria anunciado unilateralmente um cessar-fogo, pelo que a cessação das hostilidades que estaria transitoriamente a observar devia-se tão somente a um compromisso assumido na decorrência do encontro havido em Dakar entre Mário Soares e Aristides Pereira, sob os auspícios de Senghor, razão pela qual a situação de relativa paz que prevalecia apenas podia considerar-se de "tréguas", donde a necessidade, segundo o PAIGC, de se estabelecer com Comando-Chefe em Bissau umas "Normas de Vida" que regulassem o relacionamento entre os dois Exércitos na fase de transição.

Na realidade, e perante o impasse de que se rodeou a ronda negocial de Londres, onde a comunidade internacional depositou imensas expectativas (inclusivamente o Comité de Descolonização das Nações Unidas), pesava sobre o PAIGC e o Exército português na Guiné a enorme responsabilidade de resolver a enorme discrepância e alarido provocados pela ideia, enormemente publicitada, de que as sessões negociais de Londres teriam sido um total malogro, dado a irredutibilidade das partes.

O PAIGC que, contraditoriamente, se mostrava dialogante e ao mesmo tempo lançava comunicados de guerra, fazendo ver que não havia um cessar-fogo, mas sim “tréguas”, tão depressa confraternizava com as tropas do Exército português como lançava ultimatos a Unidades portuguesas. O primeiro foi a Cuntima, dando 48 horas à Unidade de Cavalaria local para retirar e o segundo foi a Buruntuma. Foram estes ultimatos que aproximaram o Comando Chefe do Exercito Português e o PAIGC, pois tinham necessidade de os resolver pontualmente, como também encontrar no terreno uma solução que superasse o impasse de Londres.

img alt="Mario Soares.jpg" src="http://guineidade.blogs.sapo.pt/arquivo/Mario Soares.jpg" width="84" height="106" border="0" />
Mário Soares, ex-Ministro dos Negócios estrangeiros que chefiou a delegação negocial portuguesa em Londres

Enquanto no terreno perdurava este ambiente, Spínola responde a atitude do MFA na Guiné com a nomeação em Maio de 1974 do Tenente-Coronel Carlos Fabião, como Encarregado do Governo e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné. Carlos Fabião chegou a Guiné no dia 7 de Maio, graduado em Brigadeiro, acompanhado do Tenente-Coronel Almeida Bruno. Até aí, Fabião, que era claramente considerado um delfim de Spínola, começou a desobedece-lo, tendo mesmo tomado iniciativas à revelia de Lisboa, na medida em que localmente tomou o pulso da situação altamente favorável ao PAIGC, para além de estava igualmente sob forte pressão do grosso dos oficiais do Exército português, seja do quadro permanente, seja da parte dos milicianos, uns e outros manifestando inequivocamente o desejo de pôr termo às hostilidades e de regressar a Portugal. Assim, o Comando-Chefe português e o Comando Militar do PAIGC, que de alguma forma já se confraternizavam, encarregaram-se de arrepiar caminho.

Prudente e profundo conhecedor da Guiné, Fabião passou doravante a afinar o diapasão da fase de transição mais com base na real situação do terreno e menos com base nas desajustadas directivas que recebia de Lisboa. Chegou mesmo de escrever "(...)uma carta ao general em que confessava compreender a necessidade do fim do império, embora preferisse que fosse outra pessoa a resolver todos aqueles problemas. Fabião recorda que lhe disse: “O senhor tem o direito de me pedir isto, mas está a destruir-me (...)” (Entrevista de Fabião a Revista "Atlântico, Junho de 2005)

Entretanto, dá-se início aos encontros de Cantanhez que permitiu que rapidamente as duas delegações pudessem rubricar as "Normas de Vida" entre as partes em negociações no terreno, prefigurarando-se, a partir daí, as condições para que o PAIGC conseguisse em Argel o essencial das suas reivindicações, incluindo os aspectos que, em Londres, se revelaram de difícil entendimento e que conduziram essa ronda negocial a uma situação de impasse. Foram, portanto, os quatro ou cinco encontros de Cantanhez que se apresentaram como a antecâmara dos Acordo Geral rubricado entre o PAIGC e Portugal em Argel no dia 26 de Agosto de 1974, o qual, desta feita, apenas consubstanciou formalmente, no plano internacional, os entendimentos tornados possíveis nas matas de Cantanhez. Com efeito, acordou-se em Argel que Portugal reconheceria a independência da Guiné-Bissau a 10 de Setembro e a que a transferência de poderes processar-se-ia até 31 de Outubro de 1974, mediante um plano de retracção aprovado de comum acordo.

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Carlos Fabião - Homem de confiança de Spínola, viria a ser investido, após o 25 de Abril, como Governador da Guiné até Setembro de 1974, altura em que o PAIGC assume o total controle do território

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Quanto ao PAIGC, consciente da sua vantagem militar no terreno, tão depressa confraternizava com soldados portugueses, como lançava ultimatos a unidades portuguesas. Senão vejamos: foi José Araújo (hábil jurista do PAIGC) quem redigiu as "Normas de Vida" que acabou, no essencial, por ser adoptada no terreno pelas partes em negociações, não obstante algumas emendas de somenos importância sugeridas pela parte portuguesa. Foi igualmente na sequência dessas negociações que o Governo português acabou por anuir a proposta do PAIGC no sentido de ser assinada um Acordo Geral em Argel (sintomaticamente, a escolha de Argel foi feita pelo PAIGC por razões óbvias, pois ali tinha o apoio do Governo local, para além da pressão internacional exercida sobre o Governo português em sentido convergente, quer do lado do bloco afro-asiático, quer do bloco comunista, para além ainda dos EUA, das Nações Unidas (na altura dirigida por Kurt Waldheim), e ainda, discretamente, por parte dos países nórdicos e escandinavos em geral.

Aliás, não é por acaso que aspectos que quase conduziam em Londres as delegações de Portugal e a do PAIGC a autêntica situação de crispação, foram quase que magicamente resolvidas posteriormente em Argel, tal a celeridade com que a delegação portuguesa anuiu em relação a todas elas, nomeadamente a exigência do PAIGC para que Portugal reconhecesse sem condições prévias a independência da Guiné-Bissau (entretanto proclamada unilateralmente em Madina de Boé, a 24 de Setembro de 1973), o direito à autodeterminação e independência de Cabo Verde e ainda o direito à autodeterminação e independência dos povos das restantes colónias africanas de Portugal. Aliás, é curioso notar que foi igualmente na ronda negocial de Argel que as duas delegações aprovaram o plano de retracção do Exército português na Guiné, sintomaticamente, plano esse praticamente elaborado por Pedro Pires com base em documentos militares do QG do Comando-Chefe encontrados aquando da tomada de Guiledje, de resto, documentos que continham informações altamente classificadas e, portanto, fidedignas quanto a composição numérica das unidades do Exercito português espalhados pelo TO (Teatro das Operações), bem como a natureza táctica e estratégica dos dispositivos e companhias militares, incluindo as forças especiais.

Efectivamente, e tomando à letra os documentos de Arquivo do PAIGC, verifica-se que quase todo plano de retracção e evacuação do Exercito português na Guiné foi materializado segundo o plano do PAIGC elaborado por Pedro Pires que, não obstante não ter participado directa e pessoalmente nas negociações havidas em Cantanhez, chefiou e dirigiu, pessoalmente, todas as sessões negociais desde Londres até Argel, assim como quase todo processo da descolonização da Guiné-Bissau e Cabo-Verde.

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Negociador-môr do PAIGC e actual Presidente de Cabo Verde

Curiosamente, não foi por acaso que Spínola o recusou cumprimentar a 10 de Agosto de 1974, quando este chefiava a delegação do PAIGC que compareceu em Lisboa para a cerimónia solene do reconhecimento por Portugal da independência da República da Guiné-Bissau (entre outras coisas, Spínola acreditava também que Pedro Pires era também o elemento moralmente responsável pela morte dos três majores na Guiné). Aliás, no seu discurso de circunstância e apesar da solenidade relativa de que se rodeou a cerimónia, Spínola não poupou Pires (que, todavia, manteve-se sereno e impávido), pois foi incisivo na maneira como se referiu aos “guinéus”, em oposição aos caboverdianos, que para ele Pires ali representava.

De qualquer forma, seria importante do lado português encontrar-se documentos militares portugueses que permitissem uma melhor aferição do papel do Exército português no processo da descolonização da Guiné, mormente os condicionamentos que propiciaram ou determinaram o “abandono” dos ex-soldados africanos que combatiam nas fileiras do Exército português. Já agora, seria também importantíssimo aferir da existência ou não desses documentos e, inclusivamente, a de um eventual plano alternativo de retracção militar do contingente português na Guiné, na medida em que, apesar de em 1974 o desequilíbrio de forças ser claramente a favor do PAIGC, facto esse que era mesmo reconhecido pelos INTREP’s com a chancela de “reservado” e de “secreto”, em uso no Comando-Chefe do QG em Bissau, nada fazia prever que o Comando-Chefe da altura pudesse aceitar, como aparentemente aconteceu com o Exército português na Guiné, que anuiu a quase totalidade das imposições do PAIGC, inclusive, a de nem sequer se ter dado ao trabalho de ter ou de apresentar, durante o processo negocial, um plano próprio de retracção/evacuação dos seus contingentes, de resto, hipótese teórica que mantenho, pelo menos até que mais luz se faça sobre a problemática.

Sintomaticamente, os documentos do PAIGC são omissos quanto a existência de um tal plano por parte do Exército português, apesar de não podermos, por isso, aferir da sua inexistência, aliás, eu próprio devo reconhecer – e isso é certamente uma das lacunas que em muitas ocasiões nos tropeçamos, e que decorrem indubitavelmente do facto de as nossas interpretações históricas serem amiúde condicionadas pela existência de documentos disponíveis e, portanto, forçosamente transitórias.

Junho de 2006
publicado por jambros às 15:43
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